Quatro poemas de Cinthia Kriemler














Cena interna

O gato amarelo no braço do sofá tem olhos de joia. Cor de
esmeralda
como os da mulher indócil que trota e relincha em
recorrência pela casa, fêmea desa(r)mada.


Ela não para. Morde, trava a boca, crava as unhas no rosto
nos braços na cabeça entupida de inteligência inútil, de
solidão espartana
                — quer arrancar cicatrizes como quem tira 
cascas de ferida.


Sufoca odeia estremece cerra os punhos finos e brancos
como
os da boneca de porcelana quebrada que mora na arca de
mogno do quarto desde
um janeiro antigo.


Deitadas na cama empoeirada do aposento-túmulo ela e a
boneca arrancada
da arca simbolizam em náuseas tontura e peito arquejante
a falta de ar dos sofreres que dividem sem segredos desde
uma manhã sombria de abandono. Manhã antiga.


Enxergam nos olhos uma da outra histórias e lembranças
que mergulham
e emergem do verde-mar de suas íris que se buscam. Ela
sofre
(a mulher), o corpo convulsionado arqueado

em feto abraçado à porcelana fria da companheira inerte.
Pensa por um instante que doer assim esfinge, como as
bonecas, deve ser
muito pior.


Apartando carne e porcelana, espreme-se entre elas o gato
amarelo
Esmeraldas faiscando
de ciúme.













Eugenia

Nos anos regidos pelo Cavalo de Fogo conta-se
que mães chinesas matavam seus bebês ainda na barriga.


Crianças nascidas cavalos de fogo crescem para ser 
assassinas — dizia a crendice chinesa. São ambiciosas, 
cruéis, desgovernadas.


Chang, Yan e Quon nasceram em anos regidos pelo
Cavalo de Fogo
(porque suas mães não acreditavam em lendas)


Eles ainda não mataram ninguém.


Chang é médico
Yan é professor
Quon é engenheiro
Todos honoráveis.


Nos anos da Besta Fardada mães lutam contra
demônios vermelhos que querem obrigá-las a abortar
— diz a crendice messiânica.


E as mães da Era da Besta Fardada não querem se tornar
assassinas cruéis de seus fetos.


Elas só matam crianças :
gays
negras
índias
E vermelhas.


Eugenia Santa — diz o pastor.


As mães dos anos da Besta Fardada estão em guerra
contra a seita que quer corromper seus filhos
brancos e sadios com mamadeiras de bico de pênis


e com cartilhas nojentas que ensinam
meninas a gostar de meninas
meninos a gostar de meninos.


Para salvar suas crianças do mal dão a elas revólveres
e fuzis e rifles de longo alcance, e as ensinam a atirar.
Atirar para matar
: gays
: negros
: índios.


Vermelhos são prioridade.















ossos anônimos



                                  [longe vá temor servil]


um fêmur lateja sob a terra vermelha, dilacerado
entranhado ao pó que o sepulta e que acoberta pecados
infames
o húmus fértil dos nutrientes perversos < eu e eles e elas e
nós
adubando a memória da dor do golpe
nos rins, na cabeça, no pau
de arara respingado de mijos, espermas, plasmas
fluidos arrancados sem gozo
no pântano subterrâneo de insepultos, cárcere privado,
ossos anônimos
não esperam anistia [eucaristia profanada]
só uma lápide, uma carpideira honesta, um réquiem
um nada eterno
acima, no abismo disfarçado em superfície
disciplinadas, moderadas, obedientes botas
batem o calcanhar em (in)continência
depois esmagam meninos e meninas
filhos, irmãos de alguém
nas ruas : grandes úteros em contração : tortura
censura, coação (rima feia, suja, sádica)
estudantes, artistas, povo, políticos de ocasião
alcaguetes que entregam Herzogs, Honestinos
zés ruelas
no Calabouço, dezoito anos, Edson Luís é morto
de dezessete, uma menina sem nome
é derrubada por um fuzil nervoso
o fêmur, dilacerado, lateja
... ou ficar a pátria livre ou morrer...














eutanásia


não é a dor. a dor eu sei.
o aperto, o peso, a ânsia
a água empoçada nos olhos.
eu sei. não é a dor. a dor eu vejo.
cheiro. lambo. chupo.
com a dor eu trepo.
é com o amor que eu não me ajeito.
esse altar tão alto. tão ar.
e eu tão abissal
peixe de profundezas. de fendas.
desprovida de luz. de som. de oxigênio.
é com a vida que eu não me ajeito.
não me acerto com coisa grande
demais (amor. adeus)
não, não é a dor.
a dor não mente. não engana.
é o amor que desliga os aparelhos.










Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, deTudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017) e participa de diversas antologias de contos e de poesia. Tem textos e poemas publicados em: Gazeta de Poesia Inédita, TriploV, Revista Gueto, Revista InComunidade, Revista SAMIZDAT, Literatura&Fechadura, Mallarmargens, Germina, LiteraturaBr, Escritoras suicidas, Diversos afins, Revista Philos. É colaboradora da revista Os Imaginários.





Imagens: Wassily Kandinsky





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