Cinco poemas de Mauricio Duarte
















BRUMADINHO


A lama
atravessa
a casa
a cara
a fala

A lama
enlameia
a alma
ilhada
que não
mais se lava

A lama que não
mais se acaba
A lama que não é
mais uma metáfora














                                            

Afogado num poço canta um homem (Mário Cesariny)





Afogado num poço canta um homem
ou melhor seria dizer: ruge
ou ainda: sibila
Porque a um homem afogado
num poço toda comunicação
é um milagre

No fundo de um poço um homem
grita sinfonias, recita todo o Eclesiastes
No fundo de um poço, afogado, seria
um homem, um país?

Mesmo afogado num poço
um homem ainda é um homem?
Ainda pertence a um país
um homem afogado?

Afogado num poço um homem canta
a trilha de fundo de nossas vidas
Afogado num poço um homem canta
e, entre calafrios, esperamos que
o ouvir já não seja um hábito














já nem me lembro mais
se foi na sala de casa
ou na rua Kazinczy
em Budapeste

que você me deixou
para sempre com
uma faca reluzente
imaginária nas mãos

é símbolo e sugestão,
você disse enquanto a
lâmina lentamente refletia
o néon dos bares e desaparecia
entre nossas costelas

já nem me lembro mais
se foi na minha cabeça
ou na rua Křemencova
em Praga

que você correu entre
falsos tiros de escopeta
e disse que sonhava
em morrer num manicômio
mastigando o próprio cabelo

já nem me lembro mais
que antes do baque antes
de cair ao rés-do-chão
ainda deu para ver
a noite se dissolver
em seus cabelos














NA PRAIA



era mais ou menos
junho e a claridade
da manhã estalava
por entre nossos dedos
enquanto você
manuseava um
punhado de areia
e o vento manuseava
seus cabelos castanhos
quando você me ensinou
que há ternura na altura
das ruínas e que nem sempre
a solidão é um privilégio
veja, disse você, a solidão
cristalizada de um peixe
por exemplo, a solidão
que se agarra às suas
escamas gelatinosas
as escamas permitem
estimar a idade do peixe
você disse, e disse ainda
veja a solidão por entre
a umidade e o sal que se
alojam na pele ctenoide
que é um tipo de escama
rugosa e denteada
foi o que você me disse
ali ao pé do mar
a mostrar o pequeno
terror nos olhos
dos peixes














é impossível precisar
quantas vezes morremos
num único dia

esta febre sem remédios
esta ausência
este incômodo

é não conseguir
achar posição
na cama na cadeira

se virar de lá pra cá
entre dores e esperas

este desconforto
como se houvesse
ossos demais
no corpo














Mauricio Duarte é jornalista, autor dos livros de poemas A arquitetura das constelações (Editora Patuá, 2017), Balde de água suja (Editora Patuá, 2015) e Rumor nenhum (Editora 7Letras, 2007). Vem publicando nas principais publicações literárias do país, como as revistas Cult, Lado7, Inimigo Rumor, Revista Gueto, Mallarmargens, entre outras. Nasceu na capital paulista em 1981.













Imagens: Kenzo Okada

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