Cinco poemas de Fábio Pessanha















é como se eu pegasse tudo com
força e metesse goela adentro a
animosidade ao perder pedaços
de pele debaixo das minhas unhas.
voz sufocada entre os dedos, as marcas
no pescoço e bem de repente o peso
das estrelas no preto da visão.
o som bruto da carne ao chão. o frio
e a rigidez num ritmo em que a pele
se anula em secreções e se esvai na
secreta ação dos vermes. e eu queria
só dizer que te amo… triste engano...













dos verbos que causam algum movimento

assumir todo o ruído
tornado grito. acolher
o rangido das costelas
ao se erigir uma rubra
constelação de façanhas,
onde a palavra refaz
o exílio da brevidade
dos corpos. romper nervuras
durante a perversidade
do céu em conceber luas
entre os escombros das horas.
ruir como rir, tal como
a boca aberta de quem
sem dó me negou a última
mordida após o colapso
dos lábios. reger o ritmo
dos encontros até que o
tranco entre os ventres tornasse
mais híbrido o sangue. ir
de olhos fechados, a fim
de que o espaço entre o início
e o fim fosse apenas uma
ilusão bem descarada.













inadiável o dia que me sinto
morto dentro da vida inadiável
a vida a vadiagem viva da
mortalidade o fundamento como
princípio o precipício irreparável
do corpo somos humanos e isso
conta a metade se dá por inteiro
quando cabe na rachadura que a
encerra o golpe da cor sinestésica
ao se iludir com a teoria do
sol a pino na cabeça que nunca
esteve tão frondosa e prestes a
receber a marretada que a
incorpore ao sangue atiçado pelo
aço e madeira o ferro entrando frio
no corpo o choque musical dos gritos
inadiável será o dia que se
fizer indecente isso que digo
inadiável o conflito dos corpos
alcançados em suas dores a fala
que não se faz ouvida em tanta gente
desfalecida o menino a calçada
a escola o tiro o pé no meio do peito
a cotovelada o ouvido estourado
a orgia entre famintos surdos cegos
quando se poderá devorar o
corpo desde sua indigência não
há nome que diga a verdade dos
lados não há postura que meça o
certo o errado não estamos todos no
mesmo barco o espaço entre quem fala e
quem escuta deve ser ocupado
deve-se acabar com a agonia de
se esperar todo santo dia pelo
sobressalto incontrolável daqueles
ombros largos de quem me tira para
dançar rodopia meu corpo numa
antropofagia em delírio vejo
os olhos de quem nunca conheci
e me reconheço em cada moldura
impensável o dia em que todas as
vozes serão ouvidas desde o ventre
de suas ancestralidades até
o desmedido ocaso de suas mortes
inadiável o instante em que sejamos
o verso e o reverso de um mesmo canto
que não se peça permissão para o
desencanto apenas se convoque o
que nunca fora tanto mais que quanto













da violência com
que se desenha o
futuro dos dias,
tenho impregnado
em mim a vontade

das ruínas. a
estrutura das
colunas que das
tragédias sustentam
o ímpeto – o esforço

com que se constrói
a derrota em peso –
são princípios para
compor a mecânica
das horas perdidas.













uma palavra apenas

pudesse ser possível uma palavra
apenas. talvez até quem sabe um
gesto para refundar o delírio
amoroso das gentes quando se
dissesse um nome mais forte que o próprio

nome e chegasse à voz o itinerário
para a genealogia do afeto. fosse
possível talvez o futuro dos
que ainda se mantêm ingênuos, com as
largas alças do vento atadas ao

crepúsculo dos nervos, a fim de
no ar parar a trajetória do
que parece impossível e bem concluso.
quem sabe ainda a generosidade
das diferenças se acirrasse e se

metabolizasse nas canções do
mundo que deram errado. de repente,
nenhuma rádio tocaria a mesma
música duas vezes, nem a novela
seria exibida em horário nobre,

nem sofá teria para abrigar
o conflito das famílias. depois
da espera pelo que fosse importante
esperar, as escolhas se dariam
após se racharem os muros erguidos

entre as costelas e as opiniões
que se mantivessem serenas ante
o genocídio das vozes... seriam
o porto seguro de um novo dia.
pudesse ser possível uma palavra

cuja tarefa fosse encontrar quem
nunca tenha tropeçado com o pé
esquerdo naquela pedra encravada
no meio da rua. seria então
o fim de um filme de amor assistido

sozinho, quando se descobre que o
amor da sua vida era o endereço
de uma rua onde se vendiam flores
condenadas ao descaso de abelhas.
uma solução pra isso talvez

seja o poema sem título não
ter respostas. não querer enxergar
o futuro daquele beijo nunca
recebido. quem sabe, talvez fosse
possível uma palavra apenas. sem

clichê ou temas, uma tal palavra
que não dissesse. uma palavra que
detivesse a felicidade de
encontrar o elo perdido entre
o futuro e o estampido seco do

tiro que encheu de flores o lugar
das frases malsucedidas. talvez
falte a palavra que organize o
inventário das vontades de se
fazer tudo de novo, e de novo o

mundo se inventasse. de novo o sol
amanhecesse na casa de portas
abertas, com as janelas apontadas
para o rosto das pessoas dispostas
a serem o ventre de suas próprias

finitudes. talvez fosse possível
uma palavra que acenasse para
o amanhã como ponte para todos
os risos, que a gente se encante pelas
pessoas como se a gênese do

universo fosse apenas um abraço.
de posse desse bem pertencente a
todos nós, porém sob tanta tinta
amalgamada, estaríamos todos
habitando o afeto, quando será

possível nascer como uma palavra
nova no meio de uma frase bem
escrita. e seria cada pessoa
um futuro, um verso nesse poema
eterno e curvo que se chama vida.











Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Assina a coluna “palavra : alucinógeno” (https://viciovelho.com/palavra-alucinogeno) na Revista Vício Velho. Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto e na própria Vício Velho. Os quatro primeiros poemas são inéditos.




Imagens:  Alexander Calder






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