Seis poemas de Leonardo Almeida Filho
O Desejo
O
desejo é algo assim como as saúvas
que
vêm numa marcha sempre certa
pelo
jardim antes tranquilo
marchando,
marcando
o
tempo
sob
uma noite escura e sem testemunhas
num
tiquetaquear de minúsculas patas
barulhentas,
decididas.
O
desejo é algo assim como as saúvas
que,
famintas, sempre vêm
e
passam, como a morte, uma-a-uma
e
sobem o tronco estático, uma-a-uma
e
cortam suas folhas, sem perdão, uma-a-uma
e
vão-se, enfim, uma-a-uma
a
outros verdes troncos,
torná-los
nada e nulos
corroendo,
corroendo, corroendo
e
eu, torto tronco triste
olho
para os meus galhos nus, desesperado,
e
lembro, uma a uma, as dores do corte das saúvas
e
perco, pelos dias, um a um, os meus pedaços.
A serpente
Eu
era pequeno
menor
que a esperança que trago
quando,
numa tarde de sábado,
meu
pai acelerou o carro
e
avançou contra o animal indefeso
Partiu
a vértebra da serpente
mas
toda serpente, eu sei,
é
uma inteira vértebra
formada
por muitas pequenas vértebras
que
a fazem deslizar.
Partiu-se,
pois, a serpente
diante
de meus espantandos olhos
sob
os pneus do meu pai.
Agora,
não mais peçonha
ou
sinuosidade
nem
escama ou guizo ou presas
Nunca
mais a bífida lambida
o
olhar gelado
os
ovos abandonados no matagal
Nenhuma
ameaça, nem medo
Sem
veneno, sem antídoto
Sem
serpente, sem pecado
e
o dia deslizando entediado
sobre
o corpo flácido da serpente
no
asfalto.
Mas
o sorriso do meu pai naquela tarde
os
dentes, o veneno
o
medo, a sinuosidade
as
mil vértebras do meu pai
e
o meu olhar de espanto
nenhum pneu partirá.
Tutano
Para Antonio Damásio
Há
coisas que pedem silêncio
o
mesmo silêncio das pedras no fundo do rio
dos
peixes nos igarapés, da aranha no paiol vazio
a
mudez das rochas e dos musgos
Há
coisas que devem permanecer caladas, intocadas
Entaladas
na garganta como o choro que se engole
Dissimulado,
amargo
Há
coisas que pedem para serem engasgadas
para
ficarem dentro da gente como tutano
pulsando
por se mostrarem vivas
não
mais que isso.
Há
segredos que devem morrer sagrados
ocultos,
enterrados, como fossem fósseis
no
sítio arqueológico da alma
sob
olhares quase-mortos
e
cheios de tristeza e desencanto
sem
dor, lamento ou pranto.
Há
coisas que exigem silêncio
mas
é sobre essas coisas que o poema berra
que
os versos uivam
que
as estrofes gritam
para
quem as quiser ouvir
e
se ensurdecer.
Farol no abismo
Terra
de torres e colinas
a
falha moral sobre a geológica
Roma
dos trópicos, bela e suja
tão
imprevisível e cruelmente lógica
ruínas
do império e da res publica
a
face fraturada da história.
Avança
um molhe no mar
que,
dentro em mim, sussurra:
–
Vento da baía, desespero e calma
tudo
se anuncia com esmero e vagas
que
a mansidão da barra espelha.
Foi-se
o Sacramento, um dia,
num
naufrágio
Fui-me
sem tormento, um dia,
ser
tão frágil
soçobrar
dormente às rochas dos anseios
Ondas
que me batem
o
peito, a cara, os olhos
a
quilha, o casco, as velas
eu,
náufrago, respiro e
me
arrisco no mergulho derradeiro
para
tocar o fundo,
o
fundo
o fundo de mim mesmo.
Outro poema em linha reta
Para Luna
Podia
sim fazer com que parassem
todos
os passos
Daí,
talvez,
cada
fibra se libertasse das costuras
se
esfiapassem os tecidos
se
esgarçariam as bandeiras
tudo
se decantaria
nervo
a nervo
tendão
a tendão
gota
a gota
como
a forma que, aguda,
pende
do teto da caverna:
Sal,
calcário, água e tempo
estancados,
perceberíamos então,
na
lentidão absoluta,
a
marcha inexorável das coisas
fazendo-se
e desfazendo-se
sempre,
sempre e sempre
Cada
ruga, riso ou cicatriz
marcando
nossa face estupefata
apreenderia
todo o sentido
da
efêmera caminhada
de
nossos passos
automáticos
em
linha reta.
Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor
universitário, escritor, ensaísta, reside em Brasília desde 1962. Mestre em
literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou, em 2008, Graciliano
Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB), O
livro de Loraine (romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido,
2008); Nebulosa fauna & outras
histórias perversas (e-galaxia, contos), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija
(romance, Editora Patuá, 2019) e Grande Mar Oceano (romance, Editora
Gato Bravo/Portugal, 2019).
Imagens: Arcangelo Ianelli
Maravilhosos poemas!
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