Seis poemas de Alexandre Guarnieri















2/dois discos rígidos





1 2



duplas drágeas biconvexas, de

prata, muito frias, pastilhas rígidas

inadvertidamente desprendidas

em pleno giro (discos), de um estron-

doso tambor de hidrogênio líquido;



tivessem um dos lados achatado

dir-se-iam disparos automáticos

estilhaços tão exatos, aos quais

soma-se entretanto o fato não ser

nenhuma catapulta este aparato



1 2



e jamais se suporia arriscado operá-lo

ao contrário, de íntegro protocolo

é o mecanismo notadamente fatigado

pois desde o dia do incidente não se

pôde apontar a causa, quiçá precisar

se fatal o resultado de tal falta,



destas duas pequenas joias da lógica;

se o desencontro crítico no interior

de um labirinto maquínico, ou de-

feito de fabricação, se erro humano,

abrupto, ou uso abusivo: o ponto

final no decurso do desgaste físico.












caixa-preta



Cada pedaço de carne é uma espécie de fábrica, [...] Fogos sombrios

ou claros encarnam-se. [...] E lentamente, à noite, à morte,

todas essas coisas se resfriam. Breve, se não a ferrugem,

pelo menos outras reações químicas se produzem [...]



Francis Ponge



no corpo, no rosto, sempre:

uma caveira os frequenta,

interna, atrás da pele, sob a

epiderme; o que a superfície

serena aparenta mascara o

cancro e, por hóspedes, os

vermes; os tecidos exercendo

seu arcano, são meandros ca-

muflando o âmago; enquanto

o tórax resguarda o motor do

miocárdio; o encéfalo: no

crânio; no osso: tutano; no

esqueleto temporário, uma

centopeia de vértebras o

sustenta, as vísceras lacradas

ao ventre, mero aparato

maquiado sob camadas de

células, em série, a lânguida

flâmula no acúmulo dos

músculos, eis toda a verdade:

o que mostra esse monstro,

ogro, invólucro, é um evento

pregresso, esperado sem

mistério, ter corpo é habitar

o futuro cadáver de si

próprio, ignóbil, sólida ne-

crose avançando sobre o óbvio,

aviso prévio, carne e

ossada (nem sempre velhos)

desse espécime de cemitério.












bitolas





largura reguladora passível de ajuste,

algo de acoplagem na tão buscada

compatibilidade dos calibres, que,

por ocasião de um encontro entre os

tubos de um oleoduto, à eficácia da

blindagem análoga à do crustáceo,

protege a pérola que se pretende

ilesa e inacessível quando a geleia

negra passa abraçada por suas chapas

de carapaça (petróleo no miolo, pas-

toso), nas argolas cuja bitola, por

pressão, progressivamente engorda,

requerendo o cálculo renovado para a

última das medidas, distendida, para

decidir o tamanho adequado a cada

segmento atracado a toda compostura

aparente de uma única linha de

escoamento, entretanto, qualquer

encontro entre diâmetros estranhos

entre si reclama as bitolas equânimes,

sem as quais, nunca se ajustariam

(daí o milagre da hidráulica) as mais

variadas alturas, de inúmeras emboca-

duras, ora tão absolutas na coligação.












[  ] corpo de prova [  ]





toda sua farinha química luta contra a obviedade,

algo nele se transforma, varia a certa dosagem,

prisma numa medida expressa em milímetros

ou cilindro resolutamente preenchido pela

própria matéria-prima, o que se quer extrair

da mistura é o que dela impere contra qualquer

intempérie, a comprovação de certas características

específicas, seu uso provável e o quanto do material

resistirá e, se ajustado, como programá-lo a esta

ou aquela finalidade? porque há nele algo posto

longe do mundo, apartado de tudo, testando-o desde

o núcleo e sobre cujo interesse futuro será preferível

adaptá-lo, se aqui ou lá (terra firme ou alto mar,

determiná-lo ao lugar) onde o império da indústria

necessite depositá-lo, quiçá sob águas agressivas,

mergulhá-lo em sulfatos, em sais de magnésio

e amoníaco, ou contra o vasto aluminato (nunca

volatilizado) que, apesar de leve e maleável, é duro

e reativo ao perigo; composto, que o enxofre sofra

fora do óleo, no cálcio só reste o arbítrio do silicato

bicálcico; há sílica aditivada ao cimento contra

a retrogressão, porque algo nele se transtorna

a certa dosagem (a rocha inda incha) [corpo de prova]

mediado pelas condições da mais forte obviedade, ou

contra as da máxima adversidade, assim este sólido,

cilíndrico ou prismático, copo/ bloco, deve referendar

a resistência, a duração dos materiais recolhidos

à anatomia, rumorosa ou silente, da sua própria provação.












o suprimento de oxigênio





a crescente tensão da consulta periódica

à reserva de gases respiráveis; a rotina

convertida em sentença de morte ante

a fantasia vencida da chegada à mais

implausível destinação outrora prometida;



do lado de fora da astronave, suposta-

mente rumo a marte, todo dorso do lus-

troso negror só antecipa a asfixia que virá;



é sem atrito o novo altar do sacrifício

untado em química anticorrosiva, ícaro

submetido às invisíveis guilhotinas, oscila

entre os sintomas ainda controláveis da

discreta cianose, da sufocação inadiável;



todo possível idílio científico se esvai

enquanto drasticamente decai a absorção

de O2 pelos dois únicos pulmões esquecidos

da suja bolha irrespirada da velha atmosfera

original; enquanto cogita extrair a própria vida,

se aferra à interrogação vazia: haverá notícia?











mensagem



uma garrafa aporta à praia, vazia,

decerto espoliada do mesmo nau

frágio de que ele próprio fora vítima;

a sobrevivência árdua, a solidão

da ilha impregnam palavras na fibra

com a qual trabalha à tinta

seu pedido de socorro, em rimas,

escrevendo este mesmo livro

em pergaminho



como não descobrir-se poeta

todo aquele que naufraga,

entregue à desolação da alma?

e desde que escasseou

o coco, a pesca, o sonho

do resgate iminente

restam apenas palavras

recolhidas na madrugada

como orvalho sobre a palma

o sal do Leviatã temperando a lenda



a garrafa é atirada n’água

com a força que dobra o

braço quase até quebrá-lo

mas resiste em riste

ao vê-la, longe ( o âmbar )

afastar-se das margens

o brilho verde do vidro

ondulando na espuma branca



anos se passam

décadas em que

lhe crescem cabelos

unhas pelos caem

dentes subtraem-se

à avara cara amarelada

( magra / insone )

por desvario ou fome



e como miragem

vinda do horizonte

não sabe bem de onde

vem voltando lenta

a mesma garrafa

a mensagem ainda lacrada,

incólume e seca, abraçada

pelo vidro, protegido papiro,

até rolar na areia

para perto de onde

é possível vê-la

e quase lê-lo, dentro,

escrito, o grito silente

( um livro inteiro )

grafado por desespero



é quando aprende:

peremptoriamente

não há nada além

da curva do futuro

da fronteira da esfera

além da espera e do mundo

que decerto inundou todo

apenas o inominável monstro

devora com gula

as sobras à deriva

deglute ~ debulha ~ engulha

e a um só estoque os engole 

                                     e tudo que ainda flutua,  
                                                 Crusoé, 

um dia
afundará





















Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia. Em 2016, co-organizou pela Patuá a antologia Escriptonita (poemas tematizando super-heróis). Também lançou Corpo de Festim (2014) [livro ganhador do 57o Jabuti], Gravidade zero (2017) e O sal do leviatã (2018). Seus três primeiros livros estão disponíveis online gratuitamente na plataforma ISSUU. 







Fotografia do autor: Amanda Erthal 













Imagens: Park Seo-Bo




Comentários