Quatro poemas de Ronaldo Costa Fernandes













O tempo

O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá fora
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.

O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.

O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.

O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.

O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiros
que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.

O tempo – animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.












O animal barbado

Este animal que se rasura
como quem raspa  a orelha do porco
para a feijoada de fim de semana,
este animal feroz e matutino,
como um auto-retrato,
com seus olhos 3 x 4 ,
observa a paisagem da janela
e do outro lado do vidro
está ele mesmo,
é ele a paisagem que envelhece
cada vez que a frequenta.
Este homem ao espelho,
gilete de martírios e angústias violáceas,
barbeia seu minuto e sua morte,
exasperada e afiada servidão,
a consciência espumosa da pequena guilhotina.














O telefone

O telefone,
quando não rumina
a língua como chicletes,
pode transformar
o dente em bala,
fazer da saliva argamassa.

O telefone,
anatomia de um só ouvido,
tecnologia de conchas arbitrárias,
pode vir a ser telegrama de vozes,
revólver na têmpora.












Dissolução

Não percebo fuga,
escape ou ladrão que me transborde.
Estou aprendendo a lição de casa,
tão difícil quanto qualquer lição da rua.
Não direi mais presente.
Quando vier a chamada direi futuro.
Refazer a ginástica:
pegar a própria barra para ascender.
Sou como os jardins que são florestas mansas
controladas por mão arquiteta,
na planta de papel vegetal,
na lobotomia da poda
ou no choque elétrico do cortador de grama.










Ronaldo Costa Fernandes é poeta e romancista. Com o livro A máquina das mãos ganhou o prêmio da Aademia Brasileira de Letras em 2010. Em 2018, publicou o volume Matadouro de vozes (Ed. 7Letras). Tem sete livros de poemas, cinco romances e três livros de ensaios. Estes poemas são do livro Eterno Passageiro, (Ed. Varanda, 2004).










Imagens: Ivan Serpa

Comentários

  1. Parabéns, Alberto, pelo blog, e pela feliz seleção de poemas do Ronaldo.

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