Quatro poemas de Lorena Martins
FRANCESCA W
Guardar nas mãos os anos
as xícaras, os teus cabelos
guardar nas mãos os acenos
os oceanos e também os pássaros
para num sábado de verão
libertá-los
do alto de um penhasco
VALSA
1
Para as nuvens que cobrem a casa
na partida
sempre haverá a dúvida, a marca dos sapatos
no cimento
os olhos fechados que relembram
girassóis caidos
camas desfeitas pelo sol da manhã
aquários vazios
Para as margens rarefeitas
a sombra esfumaçada com o dedo
o momento em que tentamos pegar com as mãos
o tempo
antes que vire passado
II
Como se todo o pranto
coubesse dentro de um copo
e contra o corpo você jogasse
ilhas
antes do abandono
CHADOR
Ali onde morreste de sede
o vulto perdido entre a poeira
e o deserto
todo dia Shirin acorda e enrola-se
até o rosto parecer
uma lua
Ali onde choraste sozinha, uma concha
adormecida sobre os ouvidos
ali onde arrancaste o véu
aos pés de um castelo medieval
Shirin continua a chupar os cubos de açúcar
do chá preto
Ali para onde nunca mais voltaste
o relógio de Shirin
ainda badala
à meia-noite
no corpo emudecido de Shirin
é sempre
meia-noite
ÁLBUM DE FOTOS
Você nua contra a janela
sentada à beira do mar
com as mãos enfiadas na areia
você ainda criança atravessando
o muro da escola
chorando diante de um dinossauro
colecionando anéis de princesa
distraída em frente a um prato de bolo
enquanto todos cantam
parabéns
muitas felicidades
muitos anos
de vida
Lorena Martins (Dom Pedrito, RS, 1982) é autora de Água para viagem (7Letras, 2011). Atualmente vive na Estônia. Estes poemas são de Corpo continente (Editora 7Letras, 2019)
Imagens: Kazimir Malevich
Comentários
Postar um comentário