Quatro poemas de Ana Maria Lopes

Joaquín Sorolla y Bastida (1863-1923) - Swimmer, Jávea (1905).


A DEUSA

Quando deus adormeceu
ela tomou conta de tudo
Deusa para todo serviço
lava, passa, cozinha,
dá referência

Enquanto ela ordena o mundo
cuida do código camponês
e traduz o chão,
o mar começa a ser mar
dentro dela

Úmida para servir, ela fala com peixes
brotam-lhe escamas
Na cama vê o dia aparecer
sem projeto ou esboço

Para ela a vida se desenha
naquilo que se chama
fundo do poço






CONSCIÊNCIA

São apenas olhos
aqueles que me olham
e não me amedrontam

São pontas de um tempo
que não reconhece futuro
e o passado é apenas
a geometria do escuro.

E mesmo que não conheças
o mês de junho,
deixe a mala pronta,
rasgue os rascunhos,
incinere os sapatos
e que tua voz esteja firme
para quando deixares para trás
O rebanho que te oprime.






E OS CAVALOS

A luz ficou guardada
trancada dentro deles
enquanto a noite
se fazia labirinto

Para sair era necessário
navalhar as horas
e jogar os cortes
no fundo do mar

Mas o mar perdera o fundo
e eles perceberam
que não bastava vida

Era preciso mastigar sombras
entregar almas
lavar os cavalos
polir a prata

Outros precisaram guardar os olhos
tecer mantas e perguntar
quem inventou o criador

Na escuridão, a certeza
de que Joyce gritara
que cavalos selvagens
não hão arrancar isso de nós.






TANTO FAZ

Preparei você em mim
há muitos anos
num tempo em que não mais se conta

Guardei seus olhos para quando você me esperar na porta
E não importa se minha mão não existir mais

ou se essas palavras não existirem
como a seita de Ho No Hana Sanpogye

Seu corpo no meu pode ser miragem
talvez viagem das ervas que se encenam o ser

Você em mim lê as linhas do rosto
e o gosto de sal denuncia minhas pegadas no mar

Mas saio pela tarde que arde a 38 graus
sem saber que a vida pode ser uma degola
ou o afogamento num copo de coca-cola.








Ana Maria Lopes nasceu no Rio de Janeiro mas é a carioca mais candanga dessa terra.  Deixou o mar do Rio e veio para Brasília em 1963. Aqui se fez poeira, tijolo e cobogó. Tornou-se parte da fundação da cidade. Por entre as árvores tortas do campus da UnB formou-se em jornalismo. Não sem antes ter feito teatro infantil, teatro universitário, cinema e o básico do curso de arquitetura. Como jornalista Trabalhou na TV Nacional de Brasília, TV Alvorada, Jornal O Globo, Jornal da Câmara dos Deputados e na TV Câmara. Durante 30 anos fez jornalismo político. Era seu trabalho, mas a poesia era seu ofício. Como prêmios literários, obteve a 1ª colocação em concurso patrocinado pela Embaixada de Portugal, Jornal O Globo e livraria El Ateneo. Obteve o 1º lugar em concurso promovido pela Editora Abril . Sua estreia no conto rendeu-lhe a 1ª colocação em concurso realizado pela Bloch Editores e a Baume Mercier. Tem três livros publicados – Conversa com verso (LGE 2006), Risco (2012) e Mar remoto (Maria Cobogó 2018) além de participação em diversas antologias: Escriptonita (Patuá), Antologia de Poesia Mulherio das Letras (Costelas Felinas), Mulherio das Letras Contos e Crônicas (Mariposa Cartonera), Conexões Atlânticas (In-Finita), Caminhos da Palavra (Outubro Edições) e os e-books Essas Águas (organizado por Wagner Muniz) e Mulheres na Literatura Brasileira (organizado pelo poeta Rubens Jardim). Participa com suas poesias de diversos blogs e administra o blog Poesia no Fim do Túnel. Dois de seus poemas se encontram em painel criado pelo artista plástico Gougon e o grupo Ciranda do Mosaico. Esse painel está exposto na Biblioteca Demonstrativa de Brasília. Integra o Coletivo editorial Maria Cobogó que reúne mulheres escritoras e cujo objetivo é dar voz e visibilidade à literatura de qualidade que é feita no Distrito Federal (www.mariacobogo.com.br).



Fotografia da autora: Janine Moraes

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