Quatro poemas de Amanda Vital
BISTURI
eu
não quero saber desses afetos da palavra:
leia
minha poesia me olhe nos olhos e diga se
é
boa ou má. não me toque pelos ombros não
me
imagine despida não tome meu partido em
rixas.
mas me leia como lê os seus comparsas.
com
o mesmo cuidado e fundura, talvez calma.
sobretudo
me leia como quem busca os óculos
para
examinar um corpo. me leia com as mãos
cobertas
de álcool em gel. eu não quero saber
desses
afetos do lado de fora da palavra: atrás
da
porta, tudo é ruído e espera. se quer me ler,
leia
como alguém que não goste tanto de mim.
DISTÂNCIA
no
lado da cama que guardei a você pendurado
em
duas voltas um rosário de pérola com a cruz
voltada
para a frente: se existe mesmo proteção
que
te guarde primeiro e que te salve em dobro
deixo
três travesseiros em linha reta ensaiando
o
volume do seu corpo sob a coberta de flanela
antecipo
nosso jeito de dormir mantenho fresca
e
cheia a garrafa d’água o abajur com luz acesa
a
janela entreaberta para ouvirmos os carros de
som
com promoções de supermercado o preço
do
fubá ecoando em meu bairro um isqueiro no
criado-mudo
junto de um quartzo rosa lapidado
que
é quando eu não acredito em uma ou outra
conta
do rosário em meu lado suspiro a espera
tateio
a noite representada em seu devido lugar
preservando
o templo com a quentura das mãos
BROTO
em
1965 joão cabral de melo neto dizia que a poesia
era
como catar grãos de feijão que boiavam na água
nos
tempos de vó não se catava feijão assim: sempre
era
encher três mãos dentro do saco de juta despejar
tudo
em cima da mesa e dedilhando pedra por pedra
milho
por milho fazia um pequeno monte no colo em
cima
do vestido para levantar a barra da saia jogar no
lixo
lavar o que sobrou na bica ao lado das pastagens
aproveitar
completar a panela para deixar cozinhando
ao
redor do fogão as meninas aprendiam pelos olhos
medir
a água contar o tempo macerar o alho com sal
e
refogar com banha de porco o feijão da vó era feito
de
um silêncio mineiro de fazer qualquer poesia ficar
só
espiando na ponta dos pés pela janela dos fundos
ARMADURA
quando
menina apertava os dedinhos na barra da saia
de
algodão num canto via as colegas bonitas correndo
seus
corpos de dente de leão suas levezas sem esforço
pelo
pátio elas sabiam subir em árvores e pular muros
e
sabiam dizer as palavras exatas para me derrubarem
de
lá de cima as palavras pulavam sobre meus ombros
quando
mulher aperto meus dedos embaixo do casaco
e
crio forças para enfrentar a beleza hoje saio do canto
com
os ombros tensos para não cair e crio meus pátios
acima
das árvores e fora dos muros também sou leveza
recolhi
do chão os ninhos caídos as sementes expostas
e
dentro de mim habita uma ave há vinte e poucos anos
Amanda Vital (Ipatinga/MG, 1995) é Bacharel em Letras - Estudos Literários pela UFMG. Atualmente, cursa Mestrado em Edição de Texto pela Universidade Nova de Lisboa. Autora dos livros Lux (Editora Penalux, 2015) e Passagem (Editora Patuá, 2018). Seus poemas são encontrados nos blogs Amanda Vital Poesia, Equimoses e Zona da Palavra, além de espaços virtuais como Germina, Ruído Manifesto e Literatura & Fechadura. Também participou de antologias como Ventre Urbano e 29 de abril: o verso da violência. Foi curadora da 4ª edição da antologia Carnavalhame. Integra o conselho editorial da revista Mallarmargens.
Imagem: Analía Plaza
Comentários
Postar um comentário