Cinco poemas de Maurício Simionato



1888

no super mercado
numa salinha dos fundos, no ano de 2019,
enquanto homens e mulheres
dirigem seus carrinhos de compras ou carregam suas cestinhas,
os alto falantes anunciam efusivamente, entre um bate estaca e outro,
a promoção da hora pela metade do preço.
e um negro é chicoteado
por dois seguranças-capatazes-capitães-do-mato, a serviço do super deus mercado,
porque queria uma barra de chocolate,
mas não tinha dinheiro para pagar.
foi amordaçado, despido e chicoteado com fios elétricos
aos 17 anos, na capital financeira do Brasil.
ele é um catador de lixos recicláveis nas ruas.
sem pai nem mãe.
a caixa registra mais uma compra
um consumidor passa o valor no crédito, em três vezes.
o repositor de mercadorias arruma as prateleiras de sabão em pó
o aposentado de chinelos pede dois pães moreninhos
“troque sua nota por um cupom e concorra a uma viagem”, diz o cartaz.
o chefe da contabilidade com o cabelo cacheado e banhado no gel,
na sala ao lado, escuta uns gritos e sorri com o canto da boca
se levanta e toma uma xícara de café com cinco gotas de adoçante barato
enquanto o jovem negro, nascido em 2002,
é chicoteado na sala ao lado, por 40 minutos.
1888 é um ano que não terminou.
Ogum não esquece. Xangô não esquece.







Nazaré no igarapé

Num relance
teu olhar tornou-se cristalino.
Ao ver toda aquela água cor de terra correr.
Tiraste de imediato o manto azul claro
com bordados cravejados,
rendas em oferendas,
lantejoulas latejando luzes.
Nas costas, um desenho de cálice dourado brilhava ao sol. Segurado por dois anjos.
Pedras brilhantes simulam molduras Art Decó ao refletirem os raios
deste exato momento.
Boca entreaberta, refrescada pela brisa que lhe encobria os lábios carnudos de prazer.
Sorriso digno de uma santidade trans, em transe.
Deixaste a coroa de flores de lírio
em cima da pedra, que lhe serviu em êxtase.
Um fio de suor lhe escorreu pelo pescoço,
Nazaré,
nua ficou.
Sem um naco de nada, alada. 
Prontinha para entrar no igarapé.
Foi com fé.
O bico teso do peito aprumou-se, promulgando a primavera.
Pés envoltos pelo lodo que lhe sagrava à beira do mundo.
Entraste aos poucos nas águas. Primeiro com a ponta dos pés.
Peixes acaris neons desentocaram-se afoitos
das entranhas das rochas subaquáticas para lhe triscar os tornozelos.
Murmuraste uma melodia carimbó ao vento.
Ensaiaste alguns passos no contratempo.
Seu pau, radiante, cintilou por um instante ao agraciar a superfície.
Bronzeada, a bunda em brasa desbundou-se ao inclinar-se
em um mergulho certeiro.
E todo um céu se abriu
em nuvens.
-- Vens.
Veio então um tesão que lhe irradiou pela espinha, na contramão.
Pra lhe fazer gozar.
Deixaste-se levar pelas correntezas
até algum mar.







Busca

Gosto das pessoas que buscam.
Porque acabam
por perder aquilo que não
são.

Gosto dos que procuram.
Mesmo que seja
esquecer a lava crua
que lhes escorre entre
os dentes.

Gosto mesmo é das pessoas
que buscam estourar
na leveza
de um toque com o indicador
a membrana
que recobre o dia.

Que seja vazia, então,
a dor que lhes entorpece
o chão.

Gosto também dos que buscam
apenas aquecer o coração
na noite fria
que se anuncia.

Mas gosto, sobretudo,
Dos que apagam
pontos finais







Pivazzas

Na dor esfarrapada do mundo
brecha alguma me joga
no jogo gratuito de todas as coisas.
Sou absorto num paraíso desumano.
carrego a coroa de amores à resistência.

Estilhaços de visões.
Suplantados traços pétreos
emergem do fundo do mar da vida.

O tempo é claro como uma gota que foge da água.
Espere no fogo.
Liberte-se desta última hipótese
chamada civilização.

Hoje fugiremos
do que te faz respirar.
Hoje encontraremos
o que te faz cantar.
Hoje arrancaremos
o que te fez sentir medo.
Hoje, não acordaremos mais cedo.

Nas profundezas do oceano, me transformo.
Transformo e me transformo no violador de línguas, leis e estereótipos.
Pois carrego em mim o fogo celeste que ganhei de presente
quando visitei o coração da terra.







GOD:

Sometimes,
Love is
F.u.r.y.
In
           [Our
]
EXI...{s}....T.
                       e
                          n
                              c [s]
                                  e.e.










Maurício Simionato, nascido em Assis (SP), jan/1973, e morador de Campinas (SP), é poeta e jornalista. Lançou os livros de poesias Impermanência (2012, selecionado pelo Fundo de Incentivo à Cultura de Campinas) e Sobre Auroras e Crepúsculos (2017, Multifoco), este último lançado na Bienal de Literatura do Rio/2017. Já teve poemas publicados em espaços digitais como Ruído Manifesto, Revista Arara e A Bacana, de Portugal. Teve poemas selecionados para um e-book especial da Revista Gueto. Seu terceiro livro, ainda inédito, foi finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura em 2019. Já publicou em antologias como Poesia Agora (Ed. Trevo) e Hilstianas V.1 (Patuá). Como repórter, já foi correspondente na Amazônia por três anos e tem passagens por diversos sites e jornais como Folha de S. Paulo e UOL. Atualmente cursa Extensão sobre Semântica e Linguística Textual.

Imagens: Ed Ribeiro

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