Um conto de Deborah Dornellas













A CONQUISTA DO MUNDO



Na casa da Mirtes, às quartas, tinha sempre uma receita diferente com galinha: assada, frita, ao molho pardo, ensopada com batatas, salpicão, além da canja com as sobras do almoço. Toda terça cedo, a Tata, cozinheira da casa, trazia uma galinha viva, segurando pelos pés, de cabeça para baixo, e a guardava no tanque, amarrada à torneira, para matar e depenar depois. A Mirtes ficava espiando de uma distância segura, na ponta dos pés, assustada e curiosa. Escutava o cró-có có e o bater inútil das asas, presas no quadrado de pedra. Chegava perto de jeito nenhum. Quando, no meio da tarde, a Tata torcia e cortava o pescoço, depois jogava água fervente no corpo da galinha, para remover as penas, subia pelos azulejos da cozinha um cheiro de morte que fazia a Mirtes engulhar. Ela evitava voltar à cozinha e não abria mais a geladeira o resto do dia, para não dar com aquela ave morta, oca e sem cabeça, marinando dentro da bacia coberta com um plástico.
Acontece que a Mirtes tinha loucura por pintos. Quer dizer, a paixão começou no dia em que a Tata trouxe o primeiro pintinho da feira, junto com a galinha da semana. A penugem anêmica, o bico minúsculo, as asas de nada, tudo naquele serzinho enterneceu a Mirtes. Ela agarrou o bichinho logo e se trancou com ele no quarto. Apertou, acariciou, carregou de um lado para o outro, tanto que o pinto não resistiu. Amanheceu mortinho na caixa de sapato que a Mirtes tinha arranjado. Ela e a Tata enterraram o bichinho no gramado da quadra, debaixo de um ipê roxo. A Mirtes chorou o resto da semana. Essa criança vai morrer de tristeza, pensou a Tata, quando viu a menina na segunda-feira. Então trouxe outro pintinho, no dia seguinte. Bem amarelinho. A Mirtes, quando viu o pinto novo, deu um salto e agarrou o coitado de um golpe. Ficou o resto do dia brincando com ele. À noite, enquanto namorava o bicho acanhado no fundo da caixa, cismou que o pinto estava tremendo demais, e era de frio. Pensou em improvisar um cobertorzinho, mas logo teve uma ideia brilhante: desmontar uma luminária velha e fazer uma gambiarra, para improvisar uma estufa. Enfiou soquete, fio e lâmpada de 40 watts caixa de sapato adentro, rasgando um buraco feio numa das laterais. Fechou o buraco de qualquer jeito, colou a tampa da caixa com durex e acendeu a lâmpada. Engenhoca inapropriada para um pinto já fora do ovo. Resultou que a caixa esquentou e quase entrou em combustão de madrugada. A avezinha amanheceu torrada.
Com a ajuda da Tata, a Mirtes enterrou o corpinho teso e escurecido do segundo pintinho perto do primeiro morto. Uma cruzinha para cada um.
Na terça seguinte, a Tata, coração mole, ficou com dó da Mirtes mais uma vez e trouxe o terceiro pinto. Esse chegou a botar corpo. Mirtes amava o bicho com loucura. Fez roupas, pôs laço de fita. Um belo dia, concluiu que tinha chegado a hora do banho, porque o pinto começou a cheirar mal. Preparou com muito esmero uma cumbuca com água morna, cortou um pedaço de sabonete Palmolive, arranjou uma bucha velha e pôs o bicho dentro do recipiente, inventando que era uma banheira para pintos. Banhou penugem, cabeça, bico, asinhas, pés, tudo. Com água e sabão. Não adiantou nada a Tata falar dez mil vezes que pinto não toma banho, Mirtes. O bicho se afogou. E Mirtes quase se afoga em lágrimas.
Mais uma cruz no gramado. A cova do afogado era a maior.
Por causa dos três assassinatos, a mãe de Mirtes proibiu de uma vez por todas a Tata de trazer mais vítimas, quer dizer, pintos, da feira. A menina ficou para morrer, mas o jeito foi se conformar. Não queria mais uma morte nas costas.
Uns meses depois, numa terça-feira de setembro, com o ar absoluto de Brasília, a Tata não se conteve de compaixão e trouxe outro pinto. Lindo. O mais bonito de todos. Mirtes quase desmaiou de alegria quando chegou da escola e viu o bicho. Agarrou o pintinho e correu para o quarto, como sempre. Pegou no armário outra caixa de sapato, arrancou de dentro o par de sandálias novas, atirou-as num canto e acomodou o recém-chegado. Ficou um bom tempo ali, esquecida da hora do almoço, admirando a criaturinha. Para esse ela deu nome: Alexandre. Ora, alguém batizado de Alexandre já nasce fadado a grandes feitos. Um nome imponente. Principalmente para um pinto.
Nos dias seguintes, assim que chegava da escola, a Mirtes corria para o quarto, fechava a porta, pegava a caixa do Alexandre e se atirava na poltrona. Apoiava a caixa na barriga e ficava ali, acariciando o bichinho, piando junto com ele. Até a Tata chamar para o almoço. Ô, Mirtes, hoje tem galinha assada com molho de laranja, que você gosta. Mas a Mirtes não gostava. Não queria mais saber de comer aves. Nem ia mais até a cozinha às terças. Estava realizada com seu novo mascote. E agora tomava muito cuidado: nada de carícias excessivas, nem lâmpada na caixa, nem banho de cuia.
Alexandre cresceu um bocado, o corpo e as asas. Quase não cabia na caixa. Mirtes arranjou uma caixa maior, fez uns furinhos na tampa, para o amigo poder respirar, colou a tampa com fita-crepe e pronto.
 A mãe percebeu logo que a filha andava numa felicidade só e não teve coragem de proibir a amizade com o pinto.
Nos fins de tarde, Mirtes gostava de ficar olhando a paisagem pelo janelão do quarto de TV. Avistava a quadra lá embaixo, os blocos, a grama, as árvores com flores amarelas e cor-de-rosa, pessoas e cachorros passando, meninos de bicicleta, o céu azul avermelhando. Contra a vontade da mãe, não debruça na janela, Mirtes, a menina debruçava. Agarrada com a caixinha do Alexandre. Numa dessas tardes, a mais rubra, a Mirtes quis mostrar melhor a superquadra lá embaixo ao Alexandre. Ergueu a persiana, debruçou-se no parapeito do janelão, abriu a caixa, tirou o pinto crescido cuidadosamente de dentro e o postou de frente para a paisagem. Começou a descrever as belezas da vista: olha lá o gramado, as árvores, o parquinho, a escola classe. É ali que eu estudo. Lá adiante é o Eixão, aquela pista bem larga. O pobre galináceo se desesperava entre os dedos da menina. Batia as asas com força e intenção, mas o máximo que conseguia era fazer umas cócegas tímidas nas mãos pequenas da Mirtes. Ela, muito atenta aos movimentos do amiguinho, percebeu então que era enorme, incontrolável mesmo, a vontade dele de ver tudo de perto, conhecer as coisas, conquistar o mundo. Então, aprumou bem o pequeno, checou as asas, firmou o corpinho morno e mole com as duas mãos, tomou fôlego e arremessou o pinto pela janela, voa, Alexandre!



















Deborah Dornellas, carioca criada em Brasília, vive em São Paulo desde 2011. É escritora, jornalista, tradutora e aprendiz de artista plástica. Mestra em História Cultural (UnB) e pós-graduada em Formação de Escritores (ISE Vera Cruz). Em 2012, publicou Triz (In House), reunião de poemas. Desde 2013, integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro e participa de todas as publicações do grupo. Foi finalista duas vezes do Prêmio OFF FLIP 2015 poesia – 5o lugar; 2016, conto) e uma vez do Prêmio Sesc-DF de Contos Machado de Assis (2016).  "Por cima do mar" (Patuá, 2018), seu romance de estreia, venceu o Prêmio Literário Casa de las Américas 2019, na categoria “Literatura Brasileira”. 








Ilustração de Deborah Dornellas

Todos os direitos reservados © Deborah Dornellas

Comentários

  1. Que beleza! Gostei mesmo. Comecei me lembrando de Clarice Lispector, mas não! , era pura Deborah! Parabéns, Deborah.

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