Três poemas de Raquel Gaio














entupida de orfandade,
abro o dorso com uma espátula que atravessa minha altura
e encontro lá um escaravelho antigo
edemas não tratados um sol sangrando no pulmão
uma contusão sempre pontual
carne, boca, nervo, tudo deserto esplêndido
um estonteante animal deficiente

um cheiro violento sai da minha carne
e as vozes dos meus pais são como um rinoceronte na minha medula
sou atravessada em todas as idades

já contou de quantas vértebras somos feitos?
qual gesto evoca a ausência que há em mim?

meus verbos são nódulos que afundam de delírio
e nas minhas bordas estão costuradas as datas de suas vertigens

qual a espessura da tua mudez?

arar essa terra pagã como a única salvação
fazer com que as cicatrizes sejam mais importantes que as
palavras.













uma idade que não acompanha
o envelhecimento dos ossos
que está sempre atrasada
devendo a algum deus
algo que nunca prometeu

fotografo eu menina
através do filme
que não perdoa os olhos
e exibo nesse corpo já gasto
tudo o que não fui

deve haver alguma dignidade nisso

nas fotos,
aparece a rachadura
que nasceu na tomada do quarto
ela está subindo em direção ao interruptor
e eu a admiro

sou feita dela
somos cúmplices na fissura
e não há nada que impeça

nosso lento avanço.













sou continente que não chegou a nascer
feto estancado tristeza dos pais
pântano onde todas as águas se misturam

tenho dois pássaros presos no centro do meu diafragma
eles mastigam um novelo vermelho que nunca acaba
no corpo deles, a fome dos séculos

você poderia me falar da profundidade dos oceanos
de como ele é tão precipício como nós, mas não
de ti só sei da água parada que adoenta meus pés

fiz emergir 23 fendas em meu corpo
exibo uma nova tatuagem no braço direito
não sei quantas ainda estão submersas
mas sei que hoje o dia amanheceu com um sol forte
e isso era tão previsível quanto eu
quanto a fome no centro do meu diafragma
quanto o vermelho que encobre os pássaros.






Raquel Gaio é poeta e artista visual. Os poemas são de Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (Editora Patuá, 2018).




















Ilustrações: (todos os direitos reservados ©) Raquel Gaio, Bruna Blum e Annie Spratt

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