Quatro poemas de Adriana Lisboa















DESMAPA

Por um tempo
habitar um não-tempo
(o que ainda há a mapear?
e que interesse há           convenhamos
em saber que chão é este?)

por um instante
não tentar desatar estes
nós       cegos
os meus (ou serão os teus?) dedos
no emaranhado do acaso
numa dobra de um tempo-não.













MEU AMIGO

Meu amigo às vezes se diz vencido
ilhado
endividado
aflito
taciturno
furioso
acossado

prende a respiração
sem saber que país o nosso
         ou quando
         ou como

mas ainda assim
sai à rua
e o mundo se dobra
aos dentes explícitos que ele arrisca
por baixo do veludo do batom.













ALPINE, TEXAS

Meu corpo e o seu
à deriva
no sono
num quarto de hotel
em dois cantos da cama
por demais king size
para nossa carnadura    digamos
plebeian size

mas basta esticar o braço

basta esticar o braço e
alcançar o seu corpo      este
que há mais de uma década
encontro
no fundo da noite
que habitamos
em qualquer Alpine, Texas
em qualquer lugar.












O QUE FICA PARA TRÁS

O que fica para trás
não é um hábito um círculo
de amizades não é a música
do amolador de facas
nem o cheiro do mar em dia de ressaca
nem o guincho amoroso
do último bonde

fica um tempo
o que existimos nesse tempo
          descontínuo
e não se trata de querer voltar
ou de nunca ter saído

trata-se do esforço
de recordar dia
após dia que a vida
se faz de improviso
e que partir           sempre
          é outra maneira
de ficar.










Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro. Estudou música e literatura. Publicou, entre outros livros, os romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago); Um beijo de colombina; Rakushisha; Azul corvo (um dos livros do ano do jornal inglês The Independent); Hanoi; a coletânea de contos O sucesso e os poemas de Parte da paisagem e Pequena música (menção honrosa - Prêmio Casa de las Américas). Também publicou obras para crianças, entre as quais Língua de trapos (Prêmio de Autor Revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) e Um rei sem majestade. Seus livros foram traduzidos em mais de vinte países. Seus poemas e contos saíram em revistas como Modern Poetry in Translation, Granta e Asymptote. Estes poemas são de Deriva (Relicário, 2019).






Imagens: pinturas de Arcangelo Ianelli





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