Três poemas de Wanda Monteiro








I

o humano é esse abismo mais profundo
depois de inventar os deuses
os pecados
e o perdão
em sua cotidiana autofagia
devora a cada instante
toda vida que lhe circunda
e habita







II
o futuro encurralado no beco dos medos
deixou que as insurgentes manhãs
lhe mordessem o cume
na fratura do tempo
depois de cravar os dentes no sol.
as noites calcinadas decretam
o silencio dos ventos
o fenecer das chuvas
a deserção dos mares






III

se um dia
essa casa de luzir azul
volte a cantar
seja esse canto um alento de chegada
cântico de deixar no fecundo silêncio
de todo fenecer
sêmens de paz
e das larvas brotem rosas de sol
mênstruo aceso
cuspido de seu ventre
e na tenra terra de agreste clareira
deve nascer uma florada de girassóis
e do céu de sua claraboia
escorrer o lume nascedouro
de quarta lua
e da sarça ardente em arenoso chão
possa eclodir o cume de ardente rocha
a reverberar de dentro para fora
outro tempo
um tempo de espera
para os que virão das estrelas



Aspiro, em demasia, pela clarividência do verbo – a espera do
alento que a tudo engloba e ilude – que a tudo cuida e dá o
seu destino. O verbo esse alento que, em descomedimento,
faz sua vigília sobre cada esfera a flutuar no ventre do espaço
e à luz do tempo. O verbo esse deus feito de luz e silêncio.









Wanda Monteiro, advogada, escritora, uma amazônica nascida à margem esquerda do rio Amazonas, em Alenquer, no Estado do Pará. Exerceu por vários anos o cargo de procuradora do Estado do Pará no Instituto de Terras do Pará/ITERPA. Participa ativamente em vários projetos de incentivo à leitura em várias regiões do país, tem centenas de textos poéticos publicados em importantes revistas literárias, impressas e digitais, como Mallarmargens, Revista Gueto, Acrobata, Diversos Afins, Relevo, Lavoura, Zona da Palavra, Vício Velho, entre outras. Escreve ensaios e crônicas para várias revistas em defesa do Estado Democrático de Direito e é colaboradora da Revista Alfarrábios RJ. Obras publicadas: O beijo da chuva (Editora Amazônia, 2008), Anverso (Editora Amazônia, 2011), Duas mulheres entardecendo (em parceria com a escritora Maria Helena Latinni, Editora Tempo, 2015), Aquatempo (Editora Literacidade, 2016), A liturgia do tempo e outros silêncios (Editora Patuá, 2019). Os poemas aqui publicados são deste último livro.



Imagens: Aldemir Martins 

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