Três poemas de Theo G. Alves






sobre o papel escuro desta madrugada

eu não sei
quanto de solidão e silêncio
compõe a vida.

sei apenas
que 92,6% do corpo de um homem
é constituído de aço
e esperança
- assim como sei
que magnésio é palavra sem
uso para um poema.

eu não sei
quanto de solidão e silêncio
compõe a vida.

sei apenas
que há espaços para deus
na memória
e na agonia
- embora haja muito pouco
de deus no amor e na felicidade.

eu não sei
quanto de solidão e silêncio
compõe a vida.

sei apenas
- e isso é muito pouco,
admito -
que é neste silêncio
e nesta solidão
que se desenham
as notas de miles davis
os versos de fernando pessoa
o cinema de wim wenders

sei apenas
- e isso é muito pouco,
admito -
que é neste silêncio
e nesta solidão
que martelo estes versos dormentes
dobrados à força
sobre o papel escuro
desta madrugada.






uma tragédia de pequenas proporções

o cansaço
está entranhado nos músculos
como
insetos encrustados em paredes
a roer
o barro do corpo pacientemente
mesmo
a parede feita de parede
e
os dedos dos besouros
pequenas e miseráveis pás
feitas de espuma

o cansaço
toca os ossos
como quem toca
um quadro ou as teclas de um piano:

para manchá-lo
para desmanchá-lo

como um besouro
pusesse abaixo uma casa
ao tocar as vigas da sala-de-estar

o cansaço
arrasta-se sobre o corpo
corpo adentro
- pesado e lodoso como
adentra a noite também lodosa -
feito os lençóis
encharcados de suor
feito garrafas de coquetéis molotov
a romper
os ossos dos muros
a despedaçar
as vitrines dos olhos
a moer
o martelo das mãos
que forjam a frio a vida -
essa tragédia de pequenas proporções.







a espera de um poema

a espera
de um poema
tem algo que ver com os gatos de rua
a que os meninos
torturam com bombinhas.

a espera
de um poema
é alguma brincadeira pouco saudável
que se faz com velhos
já muito velhos do corpo.

eu costumava
esperar poemas nos vãos silenciosos
de bibliotecas
que não eram minhas.

eu costumava
esperar poemas nos vãos silenciosos
de corpos
que não eram meus.

eu via
brotarem os poemas
do mais duro e preto asfalto
como rosas cancerosas.

eu via
brotarem os poemas
de feridas criadas em cativeiro
por minha mãe.

de alguma maneira
eu expurgava os poemas da pele
eu forjava os poemas a frio
eu dava-lhes nomes santos
e ordenava-os em pecados
arrumando-os em volta de uma manjedoura
feita com os tendões de meu corpo
e inabitada por deuses
mas ocupadas por crianças mal feitas
e mulheres de pele e ossos.

de alguma maneira
eu construía em pedra os poemas
eu arquitetava sua ossatura e intestinos
eu moldava-lhes a carne
e cobria de espumas o que era
apenas pedra e sal
sobre os quais deitava meu corpo arquejado pela violência
do que desejava
sem saber conter ou mesmo conduzir
seus movimentos.

a espera de um poema
tem algo
dos cães ao pé da porta
a esperarem seus donos que já morreram.

a espera de um poema
tem algo
dos homens que perderam
o pai ou um cão sob os escombros.











Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas é cresceu em currais novos e vive em Santa Cruz, no Rio Grande do Norte. Publicou os livros artesanais Loa de Pedra (poesia) e A Casa Miúda (contos), além de ter participado das coletâneas Tamborete (poesia) e Triacanto: trilogia da dor e outras mazelas. Em 2009 lançou o Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos) e A Máquina de Avessar os Dias, em 2015, pela editora Flor do Sal. Em junho de 2018, publicou Doce Azedo Amaro (poesia), pela editora Moinhos. É o vencedor do Prêmio Nacional Ignácio de Loyola Brandão 2018 na categoria conto, além de figurar em várias outras antologias e premiações nacionais e internacionais.


Fotografias: Theo G. Alves




Comentários

  1. Excelentes, Theo! Não foi à toa que um dos mais abalizados críticos da Literatura Potiguar o elogiou tanto, conforme vemos nessa entrevista: http://apoesc.blogspot.com/2015/07/entrevista-com-o-escritor-theo-alves.html

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