Três poemas de Carol Sanches







o deleite


é manhã no interior.

um aspecto leitoso
abraça a atmosfera 
com contornos semelhantes
aos dias de praia:

  1. uma pincelada pastel 
divide a abóbada celeste
em alto e baixo;

  1. a névoa se alonga 
frente ao sol,

- ele, embora ceda por ora 
segue firme no impulso
dos primeiros feixes;

  1. o ruído, ao fundo
soa marola
quase não se nota;

de repente, contemplar 
tamanha beleza
com olhos bem abertos
deixa de ser agressivo

isso, 

e no entanto,

meus olhos

ardem.








o fio

todos nós, seres 
enquanto vivos
estamos partes 
da mesma etimologia
da mesma massa quente 
de uma imensa bala de coco 
subterrânea
presa ao chão pelas extremidades: 
pés patas antenas
caudas raízes mãos
barbatanas vírus bactérias
ácaros asas
mínimas matérias

(mesmo os pássaros
sempre voltam ao chão)

na rua, um homem 
passa pelo amigo 
enquanto seu fio elástico invisível
se junta ao idêntico 
fio elástico invisível
do amigo

por um instante o fio, agora espesso 
acompanha sincronicamente 
os passos dessemelhantes 
as dobraduras dos joelhos 
o levantamento das mãos
na cordialidade do tchau

depois se soltam 
- os fios e as mãos -
voltam a ser mais finos que antes
embora ainda seja possível
observá-los a cada passada,
pessoa à rua, árvore, 
sob seus fios-raízes

no alto, os pássaros se consideram livres
as pessoas, dentro dos aviões
se consideram livres
desafiam o fio ao extremo
são agora longos elásticos 
dançantes no céu
costuram a imensa
colcha de retalhos
sobre o fio-terra

(tanto as pessoas livres
quanto os pássaros
sempre voltam ao chão)

na morte, 
parte desse fio 
se rompe
ainda assim
memórias fantasmas
ecoam
pela seiva subterrânea

(na morte
todos nós, seres 
enquanto vivos
voltamos ao chão)







o poema

não fosse a palavra
que não diz
o que diz
o poema seria
uma sentença de morte
do poema










Carol Sanches nasceu em Campinas - SP. Tem poemas publicados em revistas digitais e coletâneas de poesia, entre elas, Quem dera o sangue fosse só o da menstruação (Urutau, 2019); é autora dos livros independentes Poesias pormenores (2008), Toda diva tem divã (2009), e Não me espere para jantar (Patuá, 2019), menção honrosa no Prêmio Maraã de Poesia 2018. Os poemas aqui selecionados fazem parte da série inédita da autora sobre cotidianos escondidos.



Imagens: John Baldessari

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