Quatro poemas de Chantal Castelli
FUTURO DO PRETÉRITO
Um passarinho no alto, no fio, eu
diria.
O salto de um gato para
alcançá-lo.
Gato arremessado, o cheiro – de
quando
o ginecologista extrai uma mancha
suspeita
(em forma de polvo ou
formato de pera).
“Nunca mais como frango assado”,
declara, de pernas ainda abertas
mirando a vulva ampliada na tela.
Conversa fiada, conversinha de
consultório pra enganar a dor.
Cheiro de chapa quente,
pelos e ferro queimados
às 8 da manhã.
“Mas quem é que faz churrasco a
essa hora?”
Diria então que sonhou
com a manga da blusa da
mãe pegando fogo,
com quando era criança
em outra cozinha.
Estilingue, espoleta, pirógrafo
lá onde a esperam os mortos.
Satisfeita com os estalos
o cheiro de madeira e papel
queimados
a serpentina marcada a cada tiro
como quem elimina itens de uma
lista
ao cumprir tarefas.
O gato na grama, chamuscado
arremessado
pela cerca elétrica, eu diria que
não
vai longe.
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO
E nem por isso se proíbe
o uso de carro.
É só tirar a munição na hora de
brincar
como o plugue da tomada.
Às vezes a gente vê criança
pequena que
coloca o dedo no liquidificador,
liga o
liquidificador, vai lá e perde
o dedinho. E daí,
nós vamos proibir o
liquidificador?
É uma questão de educação
e orientação.
A dona de casa não vive sem
o liquidificador.
Há quem não durma sem
armas, como o latifúndio.
É preciso respeitá-los.
Se a propriedade é violada,
que sentimentos delicados
pode-se exigir do cidadão
de bem? Uma oferta,
um gesto, um cafezinho?
Bala, ou mesmo sua intenção,
se paga com bala
e mais: rasgos
no abdômen, pescoços
quebrados, uma letra
na testa, tudo isso
são ossos
do ofício, riscos
a que estão
sujeitos.
O problema deste País é a falta
de educação.
O ócio
é o pai
de todos os vícios.
PÂNTANO
Aqui tudo cresce
na direção errada
– raízes, ossos, pelos
o próprio pensamento
rente ao corpo
e suas funções.
Nada flui
sem impedimento.
Assim o salva-vidas
no sonho:
seguia-me jovem e forte
mas inerte num banco
carregado
olhos fechados.
A certa altura
encerrarão as buscas.
O que perdemos emergirá
com o corpo das crianças
lívido e inchado
do outro lado.
INFECÇÃO
Talvez eu estivesse mesmo
acostumado
a outro tipo de vida
tanto quanto esta me serve agora
deitado com você no chão da
clínica
lembrando que vieram sem disfarce
através do campo até a soleira e
do lado de dentro
mostraram como funcionam as
coisas
neste país
a doença nos músculos da
garganta.
***
O velho, o cego, o mutilado
mas também o filhote, o forte
– todos os cães de que desistimos
empilham-se à espera
de um destino mínimo.
Uma vez por semana
vamos ao crematório;
uma vez por semana
no chão da clínica
meus ombros curvados
sobre a forma achatada
e insossa do seu corpo.
Chantal Castelli nasceu em São
Paulo, em 1975. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, é
poeta, escritora, tradutora e professora. Tem poemas publicados em diversas
revistas, sites e antologias. É autora de Memória
Prévia (São Paulo: Com-Arte, 2000) e Os
cães de que desistimos (São Paulo: Hedra, 2016) – este último recebeu o
patrocínio do programa Petrobrás Cultural. Em 2019 publicou a plaquete Outra língua entre os dentes (Londrina,
Galileu Edições).
Imagens: Amanda Mustard (Google)
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