Cinco poemas de Diana Junkes






domingo em guadalupe

doze soldados da paz rostos
ocultos vestes verdes resguardam
o azul de domingo em guadalupe
arcanjo nenhum poderá salvar os
ouvidos as rosas as famílias o ar
dos esturros protetores dos fuzis

a justiça dos soldados perfura
o corpo negro até a medula:
ossos esfacelados os olhos ocos
nas órbitas acordes encarnados
transbordam da pele feito rios
a mandíbula da justiça mastiga
o fígado os rins o ventre a voz
as rotas cordas do cavaquinho
com oitenta dentes dourados

naquele abril em guadalupe
sob o sol a pino de domingo
os braços da justiça escavam
o homem pelas costas
os dedos de cobre e chumbo
laceram a carne amordaçam
os lábios que jamais beijarão
o filho que ainda vai nascer

é preciso proteger a paz
em guadalupe

as rosas as famílias o sol a
pino não podem destroçar
as penúrias do domingo

é preciso proteger a paz
(a qualquer custo)
em guadalupe

deus é grande
o estado maior
a vida tão
pequena

 


sinal de menos

toda a perversidade do mundo
palpita poemas

fascistas calhordas racistas
idiotas fome miséria tiros
merecem dia-a-dia todos os versos
metáforas-soco rimas dissidentes

mas este café na xícara vermelha da manhã
o amor o laranja do céu agora
a mulher comum seus olhos
a chaleira que canta no fogo

(estes cães sem dono vagando a esmo
pelo meio fio das cores
entre matizes clichês
rua sem lua na leveza dos becos)

já não valem verso algum que
remunere o imponderável
da língua

lirismo:
teu destino é
poço





abril

sob um céu de
inconfesso azul
nossas formas frágeis
renascem da areia

múltiplos os corpos
(entre quartzos ou
topázios de mar)
lampejam ondas






IV

na película de jodorowski
peixes e gaivotas prateiam o ar
os barcos os mastros
o menino de azul

a realidade é insuportável
nos alucinados sapatos vermelhos de jodorowski
na coleira de espinhos que usa o cão
que vem toda noite nos dizer olá e vai embora

quantos projetos no abismo
todos os jornais no abismo
não sei o que dizer estamos tristes
e graves e o cão tem fome
vamos alimentá-lo com um naco de humanidade
que nos resta ou aos sapatos vermelhos

talvez eu te ame algum dia
se ainda houver paz sobre a terra 


se estas penas flutuarem




LITORAL

amanhece inconsequente o poema
cada palavra-palmo ecoa
nos corpos a libertinagem
absoluta do grito
respira os primeiros raios 
murmúrio de grãos de areia 
até tangenciar (num átimo) o zênite 












Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora de literatura na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Dedica-se ao estudo da poesia brasileira contemporânea, particularmente da obra de Haroldo de Campos. É autora de As Razões da Máquina Antropofágica: Poesia e Sincronia em Haroldo de Campos (Ed. Unesp), clowns cronópios silêncios (Ed. Urutau), sol quando agora (Ed. Urutau) e asas plumas macramê (Ed. Laranja Original).










Imagens: Helton Souto, Rica Bezerra, Suely Shiba


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