Cinco poemas de Alexandre Pilati















[Noctâmbulo]

a palma da mão é silenciosa e longínqua.
a paisagem dorme em nossos olhos independentemente.
não está parada a forma rígida que ampara o amargo olhar.
a paisagem é um ângulo de guinada apenas calor.

as árvores estão em fogo e não dormem jamais.
e não morrem jamais as árvores em fogo.
a palma da mão tem a agonia da ação, da febre.
o fogo enlouquece e solta sua vida.

as árvores são rochas, estátuas, de sono.
as árvores dormem dentro da paisagem e não sofrem.
a palma da mão não salvará as árvores e sofre.
as árvores queimam sonâmbulas na paisagem de fogo.

ardem, aceitam, não fogem, dormem
as árvores: sonham rigorosas com a liberdade
que sabem parir de dentro das cinzas.

a palma da mão, em sua ânsia,
é pura plástica; inútil geometria da vigília
– coisa que se queima distante do fogo.





[Réquiem pequeno]

à janela
impassível arrepio
olho o jardim feito o vidro
os olhos
bem abertos
à bela imagem do desamparo
a flor
pétalas dormentes
aponta o núcleo para o zênite
só eu
sou capaz
de guardar essa flor aqui dentro
jardim outro
não há onde caiba
a eternidade que se eletriza
neste perecer











[Curumim]

a mãe está no alto
sobre ossos santa
sentada no altar
buda magra acima
de todas as tumbas

ereta ainda no útero
sem bordas da noite
ampliada à última
unha da estratosfera
a mãe está no alto

de lá despalanca
a fusão de tudo
miseravelmente
formado à deriva
do delírio do delito

não há entretons
nesta hora de maria
desde ali onde
mira-a o curumim
para a tornar beleza

a crase do fumo
e da garra da vida
brilhando no fundo
dos olhos de vidro
que ainda buscam a fé






[Doméstica]

o cheiro do frango
cozinhando na pressão
temperado com alho sal
e outras pobres especiarias em pó

arremeda
os fósforos vivos
a flor imbatível
o travesseiro alienado
a onda do mar a sorrir
a bunda cosmonáutica
o coice dos déficits

também arremeda
a mão quente

com que qualquer um
é capaz de escrever
luz avião contrapelo Liechtenstein...

não é preciso arte
para entrar de cabeça
neste pântano perfumado
que se deslumbra entre

as teias de aranha
e as casas de botão
as porcas as gelosias
furos de fechaduras
reentrâncias de insetos
no rejunte os vãos de garfos

que a poesia num repente
preenche sem titubear

apenas um corpo que mais ou menos
funcione é o que basta

um corpo em severa desatenção
em apetite sonâmbulo
um corpo buraco

quando a cozinha se enche
do cheiro de frango
cozinhando na pressão












[Acima de tudo]

12 às vezes 14
horas todo dia
não dá pra parar
a gente não dá ao luxo
parece aquele tempo antigo
que tinha escravos
a dor começa aqui
e vai até aqui
se eu falar ninguém acredita
ele lá preso e eu por aí
o que eu queria?
era um trabalho
era um jeito de viver











Alexandre Pilati nasceu em Brasília - DF em 1976. É poeta e professor de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília UnB. Publicou quatro livros de poemas: sqs 120m2 com dce (NTC, 2004); prafóra (7Letras, 2007); e outros nem tanto assim (7Letras, 2015) e Autofonia (Penalux, 2018). Mantém desde 2010 a página http://www.alexandrepilati.com para divulgação de alguns de seus trabalhos.









Imagens: Ligia de Medeiros
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