Cinco poemas de Nirton Venancio



CRASE

Ameaçam-me
atear fogo
às vestes e às paixões

se não calo o canto
se não sigo as setas
se não cesso os beijos

isso quando mais ardem
fora e dentro de mim
as vestes e as paixões.

Jogo meu corpo
em praça pública,
jogo minha alma
em graça pública.

Por isso,
dobro o canto,
e bêbado de beijos,
não me dobro às setas.







BÚSSOLA

O que pressinto
me guia.
O que aparece
desconfio.

O que desejo
me norteia.
O que sugere
me previno.

O que choro
me revela.
O que sorrir
me resguarda.

O que escrevo
me entrega.
O que apago
me devolve.







ASAS

Tirem-me a roupa
                o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
                     as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
               que criei pra mim

tirem-me o domingo
               a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
                     os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
               que criei pra mim

tirem-me os lábios
                o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
                     o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
               que criei pra mim







ARMADURA

Meu corpo é a única coisa que tenho
                                           que é nada
e como suicida
luto contra moinhos, tempestades e solidão
                                                       que é tudo.
Escondo-me nesta armadura de ossos, carne
                                                   e vestimentas
e espio a vastidão do mundo pelos
                                               buracos dos olhos
como quem espia lugares estranhos
                                           infinitos
                                           perigosos.

Meu corpo é a única coisa que tenho
para carregar o pretexto da alma.
É magro, feio e escandaloso
                                  o corpo
mas é única coisa que tenho
para caminhar pelo tempo e pelos sertões.

Garantia não tenho
se o meu corpo é forte e frágil ao mesmo instante
se me sujeito ao abismo
                       ao chão
                       à poeira

se estou marcado para me tornar saudade
                                                   lembrança
                                                   e fotografias
e minha história não terá mais
um cavalo para montar
e serei uma estátua invisível no espaço.

Garantia não tenho de nada
                                     nada
não levarei escondido no bolso
nenhuma semente
nenhum suspiro
nenhum gesto
pois tudo é podre
                  condenável
                  consumível.

Só é garantido o mais difícil:
                         a miragem na imensidão
                         o que se supõe ao longe
                         o completo mistério
para se chegar até lá
não se sabe com que corpo
não se sabe com que asas
não se sabe.








O MORTO

I
O morto
tomou destino ignorado:

em que planície nos céus
sibila o seu silêncio?

Com sua armadura desfeita
o que resta é inútil:
não suporta o vento
(que sopra com a chuva)
não será restaurado nos museus
(que espiam a história)
nem se moverá com as lembranças
(que amontoam os retratos).

O morto
tomou destino ignorado.

II
Não tenham medo:
o morto não se levantará
de sua solene posição
deitado como nunca
com seu nariz e seu sapato
               em
               riste.

III
O morto
    (saibam)
não segue no cortejo:
       segue um morto
       (peso inútil)
       que o limite do nosso olho vê.

IV
O morto independe da vontade
dos que lhe jogam areia e flores
dos que lhe dizem orações e calam
dos que choram e esquecem
- o morto
               agora
                         é eterno.

V
Lembramos o tamanho do morto
com suas roupas
com sua voz
com sua dor
e choramos o tamanho que falta
                    a lágrima que salta
                    em nós
até quando aprendermos
a não ser somente vivos.

VI
De nada mais sabemos
até que o morto nos mande notícias
e que seu vulto passe ao longe
como passam os viajantes
                            (depois)
                            do entardecer.

VII
Maior é o morto
na viagem
que ele continua

(em que planície nos céus?).








NIRTON VENANCIO. Cineasta, poeta, roteirista, professor de Literatura e Cinema, tem Licenciatura Plena em Letras, pela UECE, com habilitação em Português e Literatura da Língua Portuguesa. Foi um dos fundadores do Grupo Siriará de Literatura, em Fortaleza, no final da década de 70. Publicou os livros Roteiro dos Pássaros, Prêmio Filgueira Lima de Poesia 1980, Cumplicidade Poética, 1986, Poesia Viva, coletânea organizada por Ivan Junqueira, 2000. Premiado em vários concursos nacionais, escreve para revistas e periódicos culturais no Brasil e Portugal. Mantém as páginas na internet www.nirtonvenancio.blogspot.com, de poesia, e www.olharpanoramico.blogspot.com, de crônicas, ensaios e críticas. Em cinema, realizou os curtas-metragens Um Cotidiano Perdido no Tempo, com vários prêmios, entre eles o Margarida de Prata da CNBB 1988, Walking on water, realizado para TV HouseTop, Inglaterra, O último dia de sol, premiado em diversos festivais, e Dim, 2007. Realiza o documentário em longa-metragem Pessoal do Ceará – Lado A Lado B, um painel analítico sobre 50 anos de música cearense, de 1964 a 2014.
Foto por Enzo Venancio 
Imagens: billy liar

Comentários

  1. Instigantes poemas, Nirton. E destaco "O morto", o que mais reli no belo "Poesia Provisória". Vamos em frente com a Poesia!

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    1. Caro Alexandre Marino, Gratidão pela leitura, pelo comentário.

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  2. Maravilha Maravilhosa suas Poesias! Mais uma vez: Bravo!Bravissimo!!!

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